Guerreiros do Sol é, sem exagero, um dos melhores folhetins brasileiros lançados nos últimos anos. Produzida para o Globoplay, a novela escrita por George Moura e Sergio Goldenberg, com direção artística de Rogério Gomes, consegue algo cada vez mais raro na teledramaturgia: unir densidade literária, envolvimento popular e relevância temática sem abrir mão da essência clássica do gênero. É uma novela de verdade — daquelas que não têm vergonha de ser novela —, mas que também desafia os limites do formato.
Ambientada no sertão nordestino dos anos 1920 e 30, a história traz à tona o universo do cangaço, da seca, do coronelismo e da desigualdade social com potência narrativa e visual impressionante. A trama acompanha Rosa, vivida por Isadora Cruz, uma mulher forte, ousada, determinada, que rompe com as amarras de um mundo patriarcal para se reinventar como líder de um bando de cangaceiros. Mas o que poderia ser apenas um pastiche histórico se transforma aqui em uma epopeia emocional profundamente humana.
A estética é um espetáculo à parte: fotografia, figurinos e direção de arte transportam o espectador para um Nordeste ao mesmo tempo árido e vibrante, realista e simbólico. O sertão de Guerreiros do Sol não é um cenário, mas um personagem — pulsante, opressor e belo. A direção de Rogério Gomes acerta ao equilibrar cenas contemplativas com momentos de pura tensão, criando um ritmo hipnótico que se aproxima muito mais do cinema e das grandes minisséries do que da novela tradicional.
Mas o grande trunfo da obra está no texto. George Moura e Sergio Goldenberg escrevem com alma. Os diálogos têm poesia, os personagens têm voz, as tramas se desenvolvem com elegância e firmeza. É uma novela que confia na inteligência do público, que não explica demais, não apela para o didatismo e não subestima ninguém. As referências literárias — especialmente a Graciliano Ramos — não são apenas ornamentais: estão no tom, no vocabulário, na forma de olhar o sertão sem caricatura.
O folhetim também brilha ao tratar de temas contemporâneos com naturalidade rara. Há personagens gays no cangaço, há uma personagem lésbica, há personagens que enfrentam doenças, injustiças e violências, mas tudo está inserido na narrativa de forma orgânica, fluida, sem discurso panfletário. A novela não interrompe sua história para "falar de causas" — ela insere essas questões no coração do enredo, porque elas fazem parte da vida e da realidade, e não precisam ser forçadas ou destacadas como bandeiras.
Nesse sentido, Guerreiros do Sol acerta onde muitos erram: não transforma sua força em militância. Assim como nas grandes obras de Benedito Ruy Barbosa, há ali um olhar para os movimentos sociais, para as lutas populares e para a resistência do povo pobre, mas tudo é tratado com humanidade, sem maniqueísmo ou imposição ideológica.
O elenco também merece elogios. Isadora Cruz entrega uma protagonista potente, com camadas, vulnerabilidades e força. Thomás Aquino, em papel central, confirma por que é um dos grandes atores de sua geração. Os coadjuvantes brilham — do veterano Luiz Carlos Vasconcelos ao excelente Daniel de Oliveira, todos estão à altura da proposta.
Guerreiros do Sol poderia facilmente estar no horário nobre da Globo. Se fosse exibida às 21h, com a devida divulgação, não é exagero dizer que teria conquistado um público amplo, ávido por boas histórias. Mas talvez o streaming tenha sido o melhor lugar para ela nascer: ali, sem a pressão do Ibope, sem os cortes da grade, a novela floresceu livre e autêntica. E o público respondeu — a trama figurou entre os títulos mais assistidos do Globoplay desde sua estreia, além de liderar por vários dias no canal fechado Globoplay Novelas.
O mais importante, no entanto, é que Guerreiros do Sol entrega o que se espera de um bom folhetim: emoção, conflito, paixão, injustiça, superação. Mas entrega isso com uma sofisticação rara, com uma construção narrativa sólida, com coragem estética. Em tempos de tramas rasas, didáticas ou apressadas, é um sopro de maturidade e respeito ao espectador.
É uma novela que honra o passado da teledramaturgia brasileira, mas aponta para o futuro. Uma obra que não apenas conta uma boa história, mas entende por que ela precisa ser contada. E isso, num país com tanta história para contar, é revolucionário.
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